O Brasil plurirreligioso e o feriado de 12 de outubro
Última atualização em 10 outubro 2017 às 15h21

O
Brasil é considerado o maior país católico do mundo. Estatísticas do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgadas em 2013, apontam que
há mais de 123 milhões brasileiros seguidores desta religião, número que
representa mais de 60% da população. Entre os santos do catolicismo, se destaca
Nossa Senhora Aparecida, que tem seu dia celebrado nesta quinta-feira, dia 12
de outubro.
A
Constituição brasileira de 1824 estabelecia em seu artigo 5º:. “A Religião
Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as
outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em
casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”.
A
atual Constituição não repete tal disposição, nem institui qualquer outra
religião como sendo a oficial do Estado. Ademais estabeleceu em seu artigo 19,
I o seguinte: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração
de interesse público.”
Com
base nesta disposição, o Estado brasileiro foi caracterizado como laico,
palavra que, conforme o dicionário Aurélio, é sinônimo de leigo e
antônimo de clérigo (sacerdote católico), pessoa que faz parte da própria
estrutura da Igreja. Neste conceito, Estado leigo se difere
de Estado religioso, no qual a religião faz parte da própria constituição
do Estado. São exemplos de Estados religiosos o Vaticano, os Estados islâmicos
e as vizinhas Argentina e Bolívia, em cujas constituições dispõem,
respectivamente: “Art. 2. El Gobierno Federal sostiene el culto Católico
Apostólico Romano” – “Art. 3. Religion Oficial – El Estado reconoce y sostiene
la religion Católica Apostólica y Romana. Garantiza el ejercício público de
todo otro culto. Las relaciones con la Iglesia Católica se regirán mediante
concordados y acuerdos entre el Estado Boliviano y la Santa Sede.”
Atualmente,
o termo Estado laico vem sendo utilizado no Brasil como fundamento
para a insurgência contra a instituição de feriados nacionais para comemorações
de datas religiosas, a instituição de monumentos com conotação religiosa em
logradouros públicos e contra o uso de símbolos religiosos em repartições
públicas. Até mesmo a expressão “sob a proteção de Deus”, constante no
preâmbulo da Constituição da República vem sendo alvo de questionamentos.
É
importante ressaltar que o conceito de Estado laico não deve se
confundir com Estado ateu, tendo em vista que o ateísmo e seus
assemelhados também se incluem no direito à liberdade religiosa. É o direito de
não ter uma religião conforme disse Pontes de Miranda: “liberdade de crença
compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter uma crença”
(Comentários à Constituição de 1967).
Assim
sendo, confundir Estado laico com Estado ateu é privilegiar esta crença
(ou não crença) em detrimento das demais, o que afronta a Carta Magna.
A
Constituição da República apesar do disposto em seu artigo 19, inciso I protege
a liberdade de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e o faz da
seguinte forma:
Art.
5. VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias;
VII
– é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII
– ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa,
fixada em lei;
Art.
150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI –
instituir impostos sobre:
b)
templos de qualquer culto;
Art.
210 § 1º – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Art.
213 – Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser
dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas
Art.
226 § 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Além
das formas de colaboração estatal especificadas no texto constitucional, o
próprio artigo 19, inciso I estabelece, de forma genérica, que no caso de
interesse público, havendo lei, os entes estatais podem colaborar com os cultos
religiosos ou igrejas, bem como não pode embaraçar-lhes o funcionamento.
Por
estas razões, muito mais adequado do que chamar a República Federativa do
Brasil de Estado laico, seria chamá-la de Estado plurirreligioso, que
aceita todas as crenças religiosas, sem qualquer discriminação, inclusive a não
crença.
No
entanto, conforme já aduzido, questão interessante surge na concepção de Estado
plurirreligioso, a respeito da forma a ser utilizada pelo Estado, em certas
ocasiões, de optar pelo culto de determinada crença religiosa, quando isso
implica em afastar outra. Especificando, porque permitir que se construa uma
estátua do Cristo, e não a do Buda? Por inaugurar um logradouro público
com o nome de Praça da Bíblia e não Praça do Alcorão? E porque
não deixar de construir um monumento com conotação religiosa, com o fim de não
ofender a consciência dos não crentes e a dos crentes de outras seitas?
Somos
de opinião que este impasse deve ser resolvido através da interpretação
sistemática do texto constitucional.
Assim
dispõe a Constituição da República em seu artigo 1º: “A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (…)Parágrafo único
– Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Afirma
a doutrina que o princípio da maioria, juntamente com os princípios da
igualdade e da liberdade, é princípio fundamental da democracia. Aristóteles já
dizia que a democracia é o governo onde domina o número.
Destas
considerações, se pode aduzir que, embora o Estado deva dispensar tratamento
igualitário a todas as religiões, bem como deixar que funcionem livremente, com
base no princípio da maioria pode optar, quando necessário for, por determinada
crença, como por exemplo na ocasião de instituir um feriado, de construir um
monumento em logradouro público, de utilizar a expressão “Deus seja louvado”
que consta no papel moeda em curso, bem como elaborar sua legislação tomando
como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, nisto incluindo
questões polêmicas como aborto, uso de células de embriões humanos e união homo
afetiva.
É
importante frisar que tal posicionamento não visa beneficiar a Igreja Católica,
cuja predominância no Brasil se deve às razões culturais e históricas
decorrentes do processo de colonização que deu origem ao povo brasileiro
maciçamente composto por descendentes de europeus católicos, além do fato de já
ter sido religião oficial do país por mais de trezentos anos. Em vista disto, é
perfeitamente natural que, sendo a maioria da população brasileira católica,
como afirmam que o culto católico tenha maior atenção estatal que os demais.
Vale ressaltar que o que determina a preferência estatal por determinado credo
é a vontade majoritária popular, que não obstante às razões históricas, pode se
modificar, mormente como se vê nos tempos atuais em que as seitas
evangélicas vêm ganhando força política, importando até mesmo na eleição
de representantes. Ressalte-se ainda que a preferência da ação estatal por
determinada religião não se situa apenas em âmbito nacional, mas também
regional, sendo um exemplo a Constituição do Estado da Bahia, na qual o artigo
275 e incisos privilegiam a religião afro-brasileira, presumindo ser esta
a preferência do povo baiano.
Embora
o Estado deva respeitar e proteger os não crentes e os crentes de outros
cultos, não nos parece adequado que o Estado deva suprimir de seu ofício
qualquer alusão a determinado culto religioso, ou deixe de colaborar com este
por causa de uma minoria insatisfeita, que tem toda a liberdade,
constitucionalmente assegurada, de pregar a sua crença ou não crença, com o fim
de conquistar novos adeptos, bem como eleger seus representantes para que
defendam seus interesses perante o Estado.
Por
fim, vale também colocar que, de acordo com o artigo 19, inciso I da
Constituição, é vedado ao Estado embaraçar o funcionamento dos cultos
religiosos. Tal informação tem grande relevância, principalmente em face de
situações concretas em que se postula ao Poder Judiciário pretensões no sentido
fazer com que determinada religião haja em desconformidade com a sua doutrina,
na maioria das vezes para satisfazer um capricho. Exemplo mais comum é
pretender que a Igreja Católica realize casamento de pessoas divorciadas, o que
vai de encontro com a sua doutrina que não reconhece o divórcio e veda a
duplicidade de casamentos. Da mesma forma seria incabível a imputação do delito
previsto no artigo 235 do Código Penal, no caso de religiões que permitam a
prática da poligamia, desde que a multiplicidade de casamentos se restrinja ao
âmbito da religião, sendo que estes casamentos não deverão produzir efeitos
para o direito civil pátrio, por afrontar os princípios constitucionais que
tratam da família. Nos demais casos, a intervenção estatal nos cultos
religiosos deve se reger, como já foi aduzido, através de uma interpretação
sistemática e harmônica do texto constitucional.
Conclusões
1 –
O Estado brasileiro, de acordo com a sua Constituição, deve dispensar
tratamento igualitário a todas as crenças religiosas, incluindo a não crença,
sem adotar nenhuma delas como sua religião oficial;
2 –
A inexistência de religião oficial no Estado não significa que o Estado seja
partidário da não crença (ateísmo e assemelhados), pois, com base no
princípio da liberdade religiosa, esta deve ser posta ao lado das demais
religiões, não podendo junto com qualquer uma delas ser também considerada
oficial;
3 –
Em caso de situações em que o Estado tenha que optar por favorecer uma
determinada crença religiosa ou a não crença, o critério de escolha deve ser o
princípio democrático da preferência da maioria, exprimida diretamente pelo
povo ou através de seus representantes, ao contrário do que ocorre nos Estados
que adotam religião oficial, que prevalecerá ainda que a maioria da população
prefira outra;
4 –
Não há qualquer inconstitucionalidade no fato do Estado, instituir um feriado,
construir um monumento em logradouro público, fazer referências a Deus, bem
como elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de
um determinado credo, tendo em vista que se presume nesta atitude a expressão
da livre vontade popular, que pode se modificar em favor de outra crença
religiosa, sem que isto implique em modificação constitucional.
5 –
Com base no artigo 19, inciso I da Constituição da República, o Estado não pode
intervir nas religiões de forma a compelir que ajam em desconformidade com a
sua doutrina, sendo que, qualquer cerceamento à liberdade de culto, deve ser
feita com base na interpretação sistemática da Constituição da República, de forma
a harmonizar as suas disposições.
Victor
Mauricio Fiorito Pereira
Membro
do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro